Portal da Cidade Brusque

FUTEBOL E SOCIEDADE

Mulheres conquistam espaço e esperam maior protagonismo feminino no futebol

Conheça a história de mulheres que estão envolvidas com o esporte e sonham com um futebol mais justo e igualitário entre os gêneros

Publicado em 03/06/2020 às 06:45
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(Foto: Ilustração/Portal da Cidade Brusque)

Quando se fala da busca por igualdade de direitos feminina na sociedade é impossível não falar do papel feminino em um esporte e ambiente majoritariamente masculino e com raízes machistas e homofóbicas como é o futebol. Em diversos lugares do mundo, jogadoras, torcedoras, jornalistas e profissionais ligadas ao esporte reivindicam há anos um ambiente mais equitativo com acesso a mais direitos, melhores salários e a atenção midiática que merecem.

Existem inúmeros casos de total desatenção das autoridades do futebol, como o plantel do Atlético Huila, da Colômbia, campeão da Copa Libertadores feminina em 2018 e que por completo descaso da Federação Colombiana de Futebol e da CONMEBOL tiveram que viajar em condições precárias no retorno ao país. Imagens vazadas na internet mostravam as atletas dormindo no chão, após uma escala na Venezuela, onde por atraso na viagem, tiveram que esperar sete horas. As jogadoras denunciaram também que a premiação pelo título iria para a equipe masculina e não para elas.

Por outro lado, há o caso da jogadora argentina Macarena Sánchez, que encabeçou a luta pela profissionalização do futebol feminino argentino, tendo inclusive, recebido ameaças de morte. Isso serviu para que clubes como River Plate, Boca Juniors, Racing e San Lorenzo desenvolvessem campanhas solicitando a profissionalização, dando voz a Sánchez.


Macarena é uma das principais expoentes da luta pelo futebol feminino na América do Sul. Foto: Prensa San Lorenzo

No jornalismo esportivo, é possível identificar as mulheres ganhando espaço também como comentaristas em debates e não mais apenas como repórteres. Era comum, em programas no passado, a presença feminina em programas desta espécie estar relacionada apenas à “garota que lia os recados”, e nada debatia, questionava e expunha suas ideias. Hoje, elas assumem também o papel de protagonismo nos programas, podendo opinar livremente e tendo seu espaço de fala no mesmo patamar dos homens. O número de jornalistas mulheres nessa condição ainda está longe do ideal, mas se vê avanços com nomes como Ana Thais Mattos, do SporTV, e Renata Fan, da Band. Na internet, Alessandra Xavier, ex-jogadora e ex-funcionária da Globo, é uma das estrelas do “Desimpedidos”, canal futebolístico no YouTube.

A "Moça do Inter" vira também a do Brusque

O Brusque Futebol Clube conta desde 2019 com uma força feminina na comunicação. Lara Vantzen entrou no clube como estagiária conciliando a paixão pelo futebol com o curso de Publicidade e Propaganda. Acabou agradando a todos com sua dedicação e profissionalismo e no ano seguinte foi efetivada como Assessora de Imprensa do Bruscão.

O amor de Lara pelo futebol tem origens na mãe, Sirlei. “Ela respira futebol, se ela está em casa, ela está assistindo futebol. Então quando eu nasci, ela já me vestiu a roupa do Internacional e me deu uma bola. Em quase todas as minhas fotos de bebê, eu estou segurando uma bola”, afirma a assessora do Quadricolor. O futebol é sua principal paixão e segundo ela, ensina valores como convivência em grupo, liderança, e espírito esportivo. Jogadores como Zé Carlos, capitão e goleiro do time, servem como referência de como liderar uma equipe.

Ela também escreve para a Revista Colorada, portal de notícias mantido por torcedores do Internacional. O vermelho e branco do Inter em comum com o do Brusque, ganharam a companhia do verde e amarelo do Quadricolor no coração de Lara. Para ela, trabalhar no Brusque é uma experiência única, a qual se sente privilegiada de poder viver com um olhar que poucos tem, os bastidores e o dia-a-dia do Bruscão. “Todo dia que eu entro no ônibus do Brusque ou que estou no CT, conversando com eles, eu vejo que sou privilegiada, sempre foi o meu sonho, então as vezes parece que eu nem estou trabalhando, estou aproveitando a vida, é engraçado, mas sinto-me realizada”, orgulha-se.


Lara com o troféu da Recopa Catarinense de 2020. Foto: Arquivo pessoal

O reconhecimento e o carinho por parte da torcida também é comum nos jogos no Augusto Bauer. “Quando a torcida me chama pelo meu nome, eu começo a rir sozinha, porque eu estou nos bastidores e ter esse reconhecimento é muito bacana”, afirma.

Lara pretende cursar jornalismo após a conclusão do curso de Publicidade e Propaganda, e sonha em ver uma equipe feminina no Bruscão em um futuro próximo. Ela acredita que o Brasil teve um atraso muito grande no futebol feminino pelo fato das pessoas demorarem para entender que as mulheres também gostam e praticam o futebol. Lara muitas vezes teve que jogar junto com meninos em escolinhas pela falta de times próprios para meninas.

Preconceito 

Outro problema apontado por ela, é o preconceito enfrentado pela comunidade LGBT no meio do futebol masculino. A assessora do Brusque acredita que no futebol feminino há uma aceitação muito maior. “Infelizmente, vai se passar anos e anos até que tudo isso seja algo normal aos olhos de quem acha que não é. As mulheres e a comunidade LGBT tem o direito de estarem aonde elas querem, acredito que quanto mais as pessoas se unirem por isso, serão mais vozes para calar o preconceito”, sustenta.

Lara também afirma que já sofreu muita discriminação no meio e cita exemplos. “Uma vez em uma partida do Brusque, no qual torcedores, não consigo chamar de torcedor, estavam sendo extremamente machistas com a bandeirinha, então eu comecei a defender ela, que ela estava trabalhando e isso não dava o direito de eles falarem aquelas coisas”.

Recentemente, ela foi alvo de ataques de um torcedor, que relacionou uma publicação de cunho anti-racismo, uma pauta humanitária, com “socialismo e comunismo”, realizando ataques homofóbicos. “Talvez o rapaz saiba que eu sou, mas eu nunca o vi na vida. Então, quando recebi a mensagem disseminando o ódio, falando coisas da minha pessoa sem ao menos me conhecer e conhecer a minha família, minha reação foi querer desistir de tudo, mas não posso deixar esse tipo de pessoa, destruir os meus sonhos e sonho da minha família, que sempre amou o futebol”, defende.

Lara sentiu na pele o que o imensurável número de mulheres adeptas ao futebol no país sofre. Recebeu, porém, apoio incondicional de amigos, familiares e torcedores do Bruscão. “Aos poucos vamos buscando nosso espaço, não queremos ser superiores, queremos igualdade para todos”.

Marinheira

No outro lado da Rodovia Antônio Heil, o Marcílio Dias também aposta em uma mulher na sua equipe de comunicação. Prestes a concluir o curso de Jornalismo, na Univali, Millena Pscheidt também é aficionada pelo esporte desde muito cedo. Torcedora do São Paulo, teve como combustível na sua paixão pelo futebol a fase vencedora do Tricolor Paulista na década passada. “O São Paulo ganhava tudo e as crianças na escola gostavam muito. Além disso eu tenho primos mais velhos que torcem também, isso acabou influenciando”.

Incidente com Lucas Moura e a torcida do Coritiba

A paixão pelo clube paulista teve um episódio triste, mas que acabou feliz em 2012. São Paulo e Coritiba se enfrentavam pela 27ª rodada do Brasileirão. O protagonismo do confronto, entretanto, não foi de Éverton Ribeiro nem de Osvaldo, autores dos gols da partida, mas sim de Millena. Com apenas 13 anos, ela que estava no estádio Couto Pereira, em Curitiba, na companhia de familiares, foi duramente ameaçada e hostilizada por torcedores do Coxa após solicitar e receber das mãos de Lucas Moura, atleta do São Paulo, uma camisa do time do coração. Na primeira vez em um estádio de futebol, Millena sentiu na pele a intolerância, a irracionalidade e também o machismo de uma partida em um estádio.


Millena foi hostilizada por receber uma camisa do São Paulo no meio da torcida do Coritiba. Foto: Reprodução

O episódio, porém, serviu para que ela não tivesse mais dúvidas do caminho que queria seguir. “Foi ali que tudo começou, na verdade. Com tanta entrevista que dei, fui conhecer a Rede Globo em São Paulo, bastidores de reportagem, transmissão de jogo. Me fascinou. Vivi umas duas semanas nessa atmosfera e pensei “é isso!”. E hoje estou aqui, quase formada”.

Millena revela também que no ano passado conversou com o jogador, hoje no Tottenham, da Inglaterra e que sonha em entrevistá-lo um dia. “Ele sempre pergunta se eu ainda tenho a camisa guardada. Acho que seria legal para nós dois (a entrevista). Renderia uma boa história”, planeja.

Como surgiu o Marcílio Dias?

A chegada ao Marinheiro surgiu por uma oportunidade de estágio da faculdade. Ela, que é natural de Rio Negrinho, mudou-se para Balneário Camboriú por conta do curso, em 2016 e passou a frequentar o estádio Dr. Hercílio Luz em 2017, quando o Marcílio estava na Série B do estadual. A exemplo de Lara, Millena também acabou firmando-se no clube e segue trabalhando na comunicação do rubro-anil. Para ela, trabalhar em um clube profissional é uma “conquista muito grande” e que também gera um sentimento de pertencimento. “Eu me sinto parte da história, podendo ajudar a escrever essa retomada que o clube vem vivendo nos últimos anos. Mesmo que seja nas pequenas coisas, cada passo é importante”. Ela relata que a relação com os atletas é bastante profissional e de respeito. O trabalho na assessoria do Marcílio Dias a motivou a escrever seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre a história do Marinheiro.


Millena em uma partida do Marcílio Dias. Foto: Arquivo pessoal

A jornalista, que sonha em trabalhar em algum canal de televisão na área esportiva, está também aberta a outras possibilidades. “Continuo querendo, mas estou aberta a novas áreas. Assessoria, rádio, jornal impresso. A comunicação me fascina em todas as áreas. Se tiver a oportunidade de continuar no clube, quero muito. Escolhi ser jornalista por amar escrever, ler, pela curiosidade que sempre tive em saber das coisas e, principalmente, por poder levar a informação para os outros”, aponta.

"Ainda há muito a ser feito"

Millena lembra que as mulheres foram proibidas de praticar o futebol no país e que o preconceito está enraizado há muito tempo. “A sociedade em si é machista, no futebol não seria diferente. Mas sinto que está mudando, mesmo que a passos lentos”, se anima. Ela enxerga um crescimento no futebol feminino no país, mas ainda vê um longo caminho pela frente. “Ainda tem bastante coisa a ser feita, principalmente na realidade das atletas que é muito diferente da realidade masculina. Mas tem uma galera nova e muito boa que realmente gosta e valoriza o futebol feminino. São projetos que dão visibilidade, cobertura de competições, sites dedicados. É isso que falta”.

Inspirada por Dida, professora é ao mesmo tempo goleira

Em competições de futsal e futebol 7 em Brusque e região, é comum ver debaixo das traves a goleira Kamilla Oliveira. Ela, que trabalha como professora em duas escolas, auxiliando crianças com dificuldades de aprendizado, diz que na infância sempre enfrentou muita resistência para praticar futebol. “Morei em Curitiba e Joaçaba, nessas duas cidades estudei em escolas um pouco mais rígidas em relação a esporte. O basquete e o vôlei eram para meninas e o futebol para os meninos. Acho que dá para imaginar que não era nem um pouco feliz, e nem me encaixava. Chegar em Brusque e encontrar essa liberdade em poder escolher o que eu queria jogar sem nenhum julgamento foi uma das melhores sensações da minha vida”, diz Kamilla, que encontrou na posição de arqueira seu lugar. Ela diz que descobriu seu talento em uma aula de educação física, nos tempos de escola. “Ninguém queria ir no gol, e a que não jogava muito bem na linha foi quebrar esse galho, no caso eu (risos)”.



Kamilla defende um pênalti. Cena comum no futebol 7. Foto: Arquivo pessoal

Times em que atuou

A goleira atua desde 2017 no M.W.F.C, time de futsal amador da cidade, onde já disputou torneios pela cidade e região. Também integrou o time de futebol 7 do Marcílio Dias e do Avaí, onde conquistou a Copa do Brasil, neste ano, superando equipes como Figueirense e Corinthians, tradicionais na modalidade. Uma das referências para ela na posição é Dida, ex-goleiro da Seleção Brasileira, Milan, Cruzeiro, Vitória e Corinthians. “Para mim, ele é um dos melhores goleiros pegadores de pênalti que eu já conheci. A calma que ele passava era gigante”. A meia histórica da Seleção Brasileira, Formiga, é outra apontada por Kamilla como inspiração.

Ela inclusive, por muito tempo, jogou com um grupo de homens, todas as quartas-feiras. O convite veio através dos amigos com quem jogava poker, sua outra paixão. “Confesso que no começo me preocupou um pouco pelo fato de acharem que eu era ruim por ser mulher, ou por pensarem que tinham que diminuir a força nos chutes por ser mulher. Agradeço imensamente por ser um grupo evoluído demais, em nenhum momento houve uma situação ruim por ser a única mulher no meio de tanto homem, aliás, é um grupo que me respeita acima de tudo”. Kamilla, inclusive, por várias vezes, levou amigas para jogarem em meio aos homens, que felizmente não enfrentaram nenhum tipo de problema.

"Tudo que sai da zona de conforto é julgado"

Kamilla diz que há preconceito com a presença das mulheres no futebol porque “tudo que sai da zona de conforto, tudo que é diferente, se é julgado”. Complementa dizendo que “se você gosta de jogar futebol, é porque é lésbica, você não pode simplesmente ser uma mulher praticando um esporte”.

Ela identifica que esse problema está atrelado ao fato da mulher ser considerada peça frágil e incapaz de realizar algo que por muito tempo “pertenceu” apenas aos homens. “Só mudaremos isso com mais conhecimento, o que hoje, no cenário político em que vivemos, acho muito complicado. Hoje é muito mais fácil para alguém mostrar o verdadeiro ódio que até anos atrás tinha que ser bem escondido, hoje eles se sentem mais livres em destilar ódio e dar a desculpa que é liberdade de expressão”, se indigna.

A goleira diz que nunca passou por episódios de discriminação, mas conhece muitos casos de mulheres que já vivenciaram e ainda sofrem com isso. Ela finaliza dizendo que pretende disputar o Mundial de Fut 7 pelo Avaí, que ocorreria este ano, na Rússia, mas foi adiado devido à pandemia de covid-19.


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