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TOCO Y ME VOY

O Vingador das Malvinas

Coluna desta semana traz crônica relembrando Maradona na partida contra a Inglaterra pela Copa de 86 e traça paralelo com a Guerra das Malvinas

Publicado em 27/05/2020 às 04:09
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Eu sei que um homem que pretende ser uma pessoa considerada de bem deve se comportar segundo certas normas, aceitar certos preceitos, se adequar a determinadas regras. Mas terão que me desculpar, senhores. Há uma pessoa que não é nenhum santo. Pelo contrário, tem uma atividade muito menos importante, muito menos transcendente, muito mais profana. Sigo incapaz de o seguir julgando com o mesmo martelo que julgo outros seres humanos. E olha que não é nenhuma pessoa saturada de qualidades, pelo contrário, possui muitos defeitos. 

Falar dele entre os argentinos e o resto do mundo é quase um esporte, tanto para alça-lo ao mais alto da estratosfera ou para joga-lo na maior churrasqueira dos infernos. Um Diego com tantos pecados quanto seus milhares de xarás espalhados pelo mundo. E que pagou por isso, por ser humano, mesmo no mais alto dos céus. 

22 de junho de 1986. Havia muita mágoa e muita dor nos olhos de todos que assistiam esta partida. Era muito mais que uma partida. Emoções que não nasceram pelo futebol, nasceram em um lugar muito mais terrível e hostil. Para os argentinos não restava outra a não ser responder dentro de um campo de jogo. Se a Argentina perder, a humilhação vai ser ainda maior, mais dolorosa, mais intolerável. Assim estão alinhados a cada lado do gramado onze homens num jogo de honra. 

É futebol, mas é muito mais que futebol, porque quatro anos é muito pouco tempo para que te cicatrize a dor e te acalme a raiva. E com todo esse enredo de tragédia, um pequeno grande homem sobe para sempre aos céus albicelestes. Porque se banca na frente dos contrários e os humilha. Os rouba. Na frente dos seus olhos, os rouba. Dá um pequeno troco a um roubo muito maior e ultrajante. Mesmo que nada mude, lá estão os ingleses, em cada casa, em cada pub, morrendo de raiva do pequeno infrator que ainda olha com o canto dos olhos para o árbitro que sinaliza o meio de campo. 


Já parece suficiente, porque roubastes algo de quem te roubou primeiro, mesmo que o que ele tenha te roubado te doa infinitamente mais, mas você sabe que isso dói nele também. E ele não dá a vingança como completa, arranca pela direita o pequeno homem de azul, vai liquidando um a um, dançando uma música que eles nunca vão aprender os passos. Ele segue adiante, deixa um país todo esparramado no chão, e a bola entra nas redes dos céus para toda a eternidade.

O roubo era pequeno, comparado ao deles. O pequeno menino de Villa Fiorito se transformava em gigante, conquistando o mundo. O melhor amigo da bola, àquela que jamais ousou maltratar. Nessa tarde, sussurrou em seu ouvido que a acompanhasse, pois iria mostrar a todo mundo o quanto a queria. E assim, ele transformou seus rivais em estátuas de cimento. 

Assim, que o deixemos em paz. Negro ou branco, nunca cinza, expressão utilizada por El Diez. Obrigado pelo futebol, por Maradona, por essas lágrimas, por esse Argentina dois, Inglaterra zero. 

Inspirado e adaptado ao conto Me Van a Tener Que Disculpar, de Eduardo Sacheri.


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